As casas na Madeira ficam de montes às costas. Metidas nas arribas como funambulas, são lugares miradouros onde custa crer que a gente se descanse. Todos me dizem que é normal ser assim, sempre foi, são séculos de arquitectura e, sobretudo, de engenharia de altitudes, mas a mim não me tiram a impressão de que, nas encostas altas do Campanário, as montanhas pesam sobre as construções como se as quisessem descer ao mar. (...)
quarta-feira, 8 de outubro de 2014
Valter Hugo Mãe: Campanário
As casas na Madeira ficam de montes às costas. Metidas nas arribas como funambulas, são lugares miradouros onde custa crer que a gente se descanse. Todos me dizem que é normal ser assim, sempre foi, são séculos de arquitectura e, sobretudo, de engenharia de altitudes, mas a mim não me tiram a impressão de que, nas encostas altas do Campanário, as montanhas pesam sobre as construções como se as quisessem descer ao mar. (...)
O
presépio madeirense é muito único. Com o menino de pé ao cimo de uma certa
pirâmide, colocam-se frutas nos degraus aludindo à frescura e à abundância. São
oferendas. O menino veste linho bordado cuidadosamente pelas mulheres. Um luxo
delicado e discreto. A figura é tão vulnerável e bela que vivem as comunidades
em susto com os assaltos para furto destas peças. Tantas vezes fundamentais nas
heranças de toda a gente, estes meninos desaparecem por todo o lado. Algumas
pessoas colocam nas cómodas uns recentes e arregalados, escondendo os originais
em armários fechados. É estranho pensar que a fé vai de original a cópia. (...)
No
Campanário, como em quase toda a ilha, as encostas olham umas para as outras
como ruas dobradas a meio. Páginas de um mesmo livro que se aproximam mas não
se fecham. A percepção da vizinhança é absoluta. Passamos como visíveis.
Intensamente visíveis, quero dizer. Numa e noutra montanha, somos um bulício
apelativo. As pessoas assomam à janela para nos inspeccionar. Fazem cálculos
para saberem quem somos. Como uma página do livro encara a outra, a população
vive de nariz virado para a vizinhança. É um modo de segurança. Toda a gente se
conhece. A dona Luísa Reis vai na rua e cumprimenta cada alminha e tem pergunta
ou resposta para cada alminha porque a freguesia é uma família grande. Fica-se
a saber de quem está gordo ou magro, quem já emigrou ou quem voltou, sabe-se
das promessas de casamento e das obras nas levadas ou no arranjo dos poços de
furnas que são essenciais ao cultivo e aos animais de toda a gente.
Público.
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