domingo, 21 de junho de 2015

José Luís Peixoto - O povo



Por baixo do viaduto, o barulho da multidão é mais alto, faz eco. Homens pendurados em copos de vinho tinto e oleoso; mulheres a transpirar diante fogões, botijas de gás, bifanas, entremeadas e couratos
A música da telenovela, numa versão cigana, com vibratos de voz e guitarras varridas por unhas grandes, chega do interior de uma carrinha Ford Transit. As portas de trás, abertas, libertam essa algazarra na força máxima das colunas do auto-rádio e deixam cair meio corpo abatido pelo sol. Daqui, apenas se distinguem as calças e a barriga de um homem deitado de costas no interior da carrinha, talvez em tronco nu. Está muito sol hoje.
Ao lado de tantos, desço a Feira do Relógio. Como um céu remendado, as lonas esticadas protegem-nos desse sol ácido. Desvio-me das cordas que suportam as tendas, desvio-me das estacas de aço e daqueles que já sobem, carregados de sacos ou de olhares receosos, apontados às camisolas penduradas, aos maços de meias a cinco euros, às sapatilhas que uma mulher com buço garante serem de marca.
Qualquer-coisa qualquer-coisa ao Senhor, Ele faz maravilhas, canta um homem que leva uma Bíblia na mão, uma bandeira de Portugal ao ombro e um despertador pendurado ao pescoço. Como nós, passa pelo meio das bancas de perfumes, ferramentas da construção civil, óculos de sol e óculos de ver ao perto que se experimentam logo ali. Um cigano de luto, barbas a cobrirem-lhe o pescoço, cabelo comprido num chapéu já sem forma, grita mais alto, rasga a voz. Tem os tornozelos submersos por um monte de roupas que uma roda de mulheres atira ao ar. Os vendedores de mobílias estão refastelados nos sofás, entre arcas de enxoval, entre quadros de montanhas, cascatas, praias ao pôr do sol.

Nota: José Luís Peixoto estará em Caracas em Novembro de 2015 para o aniversário do IPC.

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